Há 37 anos, quando Vanilda de Jesus Pereira ainda
não tinha 14, vir de Confins a BH era uma verdadeira viagem. Não havia essa de
Linha Verde. Era quando ela deixava a casa dos pais, na cidade da região
metropolitana, para trabalhar como doméstica na capital, onde nasceu. Tinha o primeiro
grau (ensino fundamental) completo e, além do trabalho da casa, lia o jornal
para a patroa e orientava a filha da mulher com os trabalhos de escola. Uma
noite, depois de ajudar a criança a fazer o resumo de uma obra literária, levou
o livro para ler no quartinho quente e apertado.
“Por incrível que possa parecer o livro era
Escrava Isaura. A obra, escrita pelo romancista mineiro Bernardo Guimarães
(1825-1884), pertencia à biblioteca da casa. Mal Vanilda começou a leitura, a
patroa apareceu, enfurecida. “Com ordem de quem você pegou o meu livro?” Na
mesma noite a demitiu e, se ainda estiver viva, não sabe o bem que fez a
milhares de pessoas, além de mudar a vida daquela menina. Vanilda foi para a
rodoviária. Não havia mais ônibus naquele dia para Confins e ela dormiu nos
jardins do terminal.
No dia seguinte, foi à Livraria Amadeu, o mais
famoso sebo de BH, então na Galeria Ouvidor. “Comprei dois livros, Escrava
Isaura e Éramos Seis – este da escritora paulista Maria José Dupré
(1898-1984).” O pai, lavrador, era evangélico e praticamente obrigava a filha a
segui-lo na opção religiosa. “Ora, se eu pagava 10% do ganhava à Igreja, por
que não gastar mais 10% com livros? Arrumei outro emprego e passei, então, a
comprar dois livros por mês. Eu me tornei uma devoradora de literatura.”
Valnilda lia e emprestava a quem pedisse, sem
esperar pela devolução. Deixou Confins e foi morar na pequena favela que havia
no entorno do viaduto do Anel Rodoviário no Bairro São Francisco. Já com quatro
filhos e solteira, sofreu um AVC. “Não pude mais trabalhar como empregada.
Então, pedi a um vizinho que adaptasse um pedaço de ferro afinado na ponta de
um cabo de vassoura e fui para as ruas catar papelão para sustentar os filhos.”
Não era raro achar um ou outro bom livro no lixo.
Um dia, no entanto, em uma calçada da Pampulha esbarrou em um monte de livros,
entre os quais enciclopédias. “Perguntei ao morador mais próximo se era dele.
Respondeu que era lixo mesmo. Lixo cultural, claro. O que dei conta, botei na
cabeça. Mas apareceu um taxista solidário. E ele me ajudou a levar todos
aqueles volumes para a favela.” Os livros encheram o barraco. “Em cima da cama,
debaixo do fogão, em todos os lugares. E cuidei de etiquetar todos.”
Nasceu a primeira biblioteca formada por Valnilda.
E, ao contrário da daquela primeira patroa, ela abriu o acervo a toda a
comunidade. Mas não era apenas livro o que Vanilda recolhia. Crianças sem pai,
sem mãe e sem rumo também. “Com os meus quatro, posso dizer que tenho 48
filhos”. Em todos os fins de ano, os meninos escreviam cartas pedindo
brinquedos e roupas, que ela entregava a empresas. Por isso, sofreu a maior
carga de preconceito, e da polícia.
“Havia várias pessoas com carros modernos estacionados na beira da favela. Eram empresários que foram fazer doações. Um carro da PM parou e os militares foram logo perguntando se era um sequestro.” De tanto acumular livros, doados, achados ou comprados, etiquetados e arrumados, Vanilda virou referência. A ajudou a criar bibliotecas nas cidades de Confins, São Joaquim de Bicas, São Francisco, Berilo, Nanuque, Salinas, Posto da Mata (BA), Monte Azul, Sabará, Mato Verde, entre outros, e nos bairros Cachoeirinha e Céu Azul, em BH. No São Francisco não há mais: a favela foi erradicada para obras da Avenida Antônio Carlos.
A mais nova biblioteca de Vanilda é no Bairro Paquetá, na Pampulha, onde mora. É uma casa humilde, com todos os cômodos tomados por prateleiras repletas de livros, a maioria doada. Romancistas, poetas, pensadores, personagens de quadrinhos e tantos outros do universo da literatura convivem à espera de quem se interessa pelo conhecimento. A casa está sempre de portas abertas e Vanilda está a postos, solidária com quem precisa de ajuda, como marcar uma consulta no SUS, conseguir uma ambulância e até para um curativo de emergência.
“Havia várias pessoas com carros modernos estacionados na beira da favela. Eram empresários que foram fazer doações. Um carro da PM parou e os militares foram logo perguntando se era um sequestro.” De tanto acumular livros, doados, achados ou comprados, etiquetados e arrumados, Vanilda virou referência. A ajudou a criar bibliotecas nas cidades de Confins, São Joaquim de Bicas, São Francisco, Berilo, Nanuque, Salinas, Posto da Mata (BA), Monte Azul, Sabará, Mato Verde, entre outros, e nos bairros Cachoeirinha e Céu Azul, em BH. No São Francisco não há mais: a favela foi erradicada para obras da Avenida Antônio Carlos.
A mais nova biblioteca de Vanilda é no Bairro Paquetá, na Pampulha, onde mora. É uma casa humilde, com todos os cômodos tomados por prateleiras repletas de livros, a maioria doada. Romancistas, poetas, pensadores, personagens de quadrinhos e tantos outros do universo da literatura convivem à espera de quem se interessa pelo conhecimento. A casa está sempre de portas abertas e Vanilda está a postos, solidária com quem precisa de ajuda, como marcar uma consulta no SUS, conseguir uma ambulância e até para um curativo de emergência.
Ela ganha a vida como cuidadora de idosos. É para
os que não podem pagar pelo serviço ela faz um sopão, todos os fins de semanas,
e distribui marmitas. Doações de alimentos e obras literárias chegam a toda
hora. E nem é preciso chamá-la. Basta deixar na porta. “Quantas mulheres já
tirei da prostituição, das drogas. Basta você sorrir para alguém e terá a
certeza de que Deus existe. E naquele mundo de livros, aparece Maria Eduarda,
de 6 anos, filha de coração de Vanilda. É uma pequena devoradora de literatura
infantil. “Ler é muito bom”, diz com pose de quem sabe do que está falando.
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