Mais de 100 anos se
passaram e a Guerra do Contestado (1912-1916) está sendo revisitada, debatida e
questionada por seus descendentes por meio da relação cinema e educação. A 2ª
Mostra de Cinema Chica Pelega levou 632 estudantes de 12 escolas – oito
estaduais, três municipais e uma particular – ao Cine Lúmine, em Curitibanos,
nos dias 18 e 19 de abril. Durante as cinco sessões diurnas, todas acompanhadas
de debate, os estudantes puderam assistir a três curtas-metragens: Olhar
Contestado (2012), de Fabianne Balvedi e Fernando Severo; Irani (1983), de
Rogério Sganzerla e Larfiagem (2017), de Gabi Bresola. Na sessão noturna, teve
também a exibição do longa-metragem Terra Cabocla (2015), de Márcia Paraíso e
Ralf Tambke. Produção da Pupilo TV e da VMS Produções. Realização: Governo do
Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura (FCC),
com recursos do Governo Federal e da Lei Aldir Blanc.
Durante o bate-papo,
o professor Jilson Carlos Souza, da Associação Paulo Freire de Educação e
Cultura Popular (APAFEC), de Fraiburgo e do Fórum Regional em Defesa da
Civilização e Cultura Cabocla do Contestado, comentou com os estudantes sobre a
origem do nome Curitibanos – Homens que vem de Curitiba. Estes homens, segundo
ele, faziam o tropeirismo de gado, ou seja, conduziam os animais do Rio Grande
do Sul até o centro econômico do Brasil, que naquela época era Sorocaba, no
interior de São Paulo. A palavra Curitiba tem origem tupi-guarani – Cidade das
Araucárias. E assim, os homens que viajavam até Curitiba, fundaram uma cidade
no meio do caminho, antes de chegar à cidade das Araucárias. Por ser este lugar
de passagem, Curitibanos é o espaço também que deu origem a outros conflitos
agrários desta época.
A partir desta
introdução, o educador popular contou o que ele considera um dos episódios mais
interessantes da Guerra do Contestado e que fica localizado há 800 metros de
onde acontecia a 2a Mostra de Cinema Chica Pelega – Contestado em Foco.
“Cansados de apenas se defenderem dos ataques, os caboclos e caboclas resolvem
também atacar. Eles incendiaram o cartório e a Igreja. No entanto, eles não
buscavam vingança, não queriam o sangue dos seus matadores, eles queriam
justiça. Ninguém morreu. Os prédios estavam vazios, Apenas foram queimados e eliminados os
registros, os papéis, os documentos que davam direito de posse às terras – o
que dava direito a matar”, disse ele ainda acrescentando:
Para
nós caboclos e caboclas, a nossa relação com a terra não é de exploração, é de
pertencimento. A terra é nossa mãe, ela é o que nós chamamos de Pachamama, a
grande mãe. E pros brancos que aqui chegaram e passaram a ter o título de
terra, e por isso eles podiam expulsar os caboclos de suas terras, a relação é
de exploração da terra. Isso denota que a nossa história não começou há 60, 70,
100 anos atrás, com os imigrantes. Ela começou há pelo menos 10 mil anos, com
as nações indígenas. Não foi o homem branco que nos ensinou a comer aipim,
pinhão, foi o indígena. E é dessa história que nós estamos falando nesses
filmes.
Por meio da parceria
entre a 2ª Mostra de Cinema Chica Pelega Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) campus de Curitibanos, foi possível a participação do professor Paulo
Pinheiro Machado, autor de Lideranças do Contestado (2004), Guerra Santa
Revisitada (2008), Rebeldes do Contestado (2016) e coordenador do grupo de
pesquisa sobre o Contestado. Para ele:
A
resistência contra a expropriação de ferrovias existia em todo o Brasil e em
toda a América Latina. Essa concessão que dava terra em cada lado da linha de
ferro não era só no Contestado. Estradas em outros lugares do Brasil impactavam
sobre comunidades da mesma forma, mas não aconteceu a Guerra do Contestado em
todo lugar. Aqui houve a união de vários elementos culturais subjetivos que
viabilizaram esta forma de resistência e de organização da população. É isso
que a gente precisa entender. A luta contra o coronelismo, contra a ferrovia
que causava todo aquele impacto ambiental e social, são elementos muito além
das questões regionais. São elementos nacionais. A discussão sobre o
coronelismo não era uma discussão só do meio oeste de Santa Catarina, era um
problema do Brasil inteiro. E ainda é.
O professor Paulo
Pinheiro insiste que o contexto agrário no Contestado é de resistência à
expropriação.
Eles
já eram posseiros. Até os grandes fazendeiros não tinham título de propriedade.
O contexto hoje é de reconquista do território perdido. A luta pela Reforma
Agrária hoje se comunica com o Contestado, assim como se comunica com as
missões Jesuíticas. Há vários descendentes de imigrantes nos redutos.
MAS, AFINAL, QUEM É O POVO CABOCLO?
Os estudantes
ficaram curiosos ao ver os filmes, ao ouvir as histórias relatadas pelo
professor Jilson Souza, a respeito da participação de Curitibanos na Guerra do
Contestado, dos ajuntamentos, então chamados de Cidades Santas. Mas quem são
então estes caboclos?
O caboclo e a cabocla somos todos nós: o preto, o índio e o branco pobre Esse povo misturado, que resistiu e nos trouxe até aqui. Nós só estamos vendo esses filmes e dialogando sobre o Contestado porque nós somos descendentes, nós somos continuadores da história do Contestado. Hoje em outras trincheiras. Naquele momento, eles tiveram que enfrentar canhão, avião, metralhadora alemã. Hoje, a nossa tarefa é enfrentar a tentativa de esquecimento, de apagamento da história, de quem nós somos e o que somos. E ser caboclo é um grupo social formado por pelo menos três etnias: indígena, negra e branca.
A GUERRA PODIA
TER SIDO EVITADA
O professor Paulo Pinheiro Machado destacou uma fala do professor
Rogério, dentro do filme Terra Cabocla (2012), quando ele afirma
que a guerra contra o próprio povo não é uma fatalidade, é uma decisão
política. Ela podia ter sido evitada e a matança não teria acontecido:
Possivelmente Taquarussu do Bonsucesso hoje
fosse uma espécie de Juazeiro do Norte, vendendo fitinhas de João Maria, tendo
uma romaria anual… Juazeiro do Norte teve mediações políticas que impediram o
ataque. Padre Cícero era um coronel, ele estava na política oligárquica,
influenciava na política nacional e regional. Aqui no Contestado não tinham
nenhum tutor, nenhum coronel que fizesse esse tipo de mediação. E aquela
concentração de pobres foi vista como uma ameaça à ordem estabelecida. Foram
sistematicamente atacados e a Guerra se estabeleceu.
Ao final de cada sessão, de cada participação, de cada nova escola, de
cada novo município da região do Contestado por onde a 2ª Mostra Chica Pelega
tem passado percebe-se que a história é latente. As reflexões sobre a
guerra são também sobre a vida e a reconquista da terra. Esta edição se encerra
a próxima parada, é em Caçador, nos dias 25 e 26 de abril, no Cine Lúmine. Até
lá.
Fotos: Luana Callai e Gabriel Felip Gomes Olivo
Matéria: Cristina de Marco