Até o final do mês de abril
circulará a edição nº 16, do Jornal Asas da Informação, a entrevistada da próxima
edição é a educadora Juliana Cruz, natural de Fraiburgo, graduada em História,
vivendo em Florianópolis a mais de 3 anos, mestre e doutoranda em Educação pela
Universidade de Santa Catarina – UFSC, integrante do coletivo de educadores da
APAFEC. A entrevista será sobre o pensamento de Paulo Freire e a sua
vigência para a educação. O Blog Esportes em Debate, teve acesso a entrevista e
autorização para publicá-la na integra.
JAI – Conte parte de sua trajetória como educadora em
Fraiburgo e como integrante do coletivo de educadores da APAFEC.
Juliana Cruz: Trabalhei durante aproximadamente 4 anos como educadora em
Fraiburgo. Iniciei minha formação em educação realizando o curso de Magistério,
que foi uma primeira experiência de preparação para a atividade de educação,
mas que não supriu minhas expectativas. Em seguida, realizei a graduação em
História e no ano de 2005, fui chamada para lecionar, no entanto sempre busquei
algo que me levasse a ter gosto pela profissão, pois ser educador na atualidade
é uma tarefa difícil e as relações de trabalho na escola se tornavam cada vez
mais complicadas, falta de diálogo (entre estudantes, professores, direção), autoritarismo,
etc.
Então recebi o convite do educador
popular Jilson para conhecer outra forma de educação, que se vinculava para
além da escola disciplinadora, que se ocupava mais em inibir e manter a ordem
da classe, do que priorizar a busca pelo conhecimento, da compreensão da
realidade social, do funcionamento da sociedade capitalista. Nesta forma de
educação popular, consegui dar objetividade ao ensino e aprendizagem para além
dos julgamentos precipitados sobre os estudantes, ao invés de priorizar uma
educação que mais se preocupava em seguir ordens vindas de cima, comecei a
enfatizar a busca pelo conhecimento, a compreender os estudantes para além das
paredes da escola, saber que cada um tem uma história de vida, uma vida
cotidiana, com conflitos e perspectivas para realizações de sonhos. A maneira
como os projetos sociais são efetivados, como prioridade sempre para a busca do
conhecimento cientifico me fez compreender que além de possibilitarmos aos
estudantes a possibilidade de praticar esporte, cursar informática ou assistir
um filme, também à compreensão da realidade social ao qual estão inseridos. Que
muito mais que denunciar a violência, a crise da educação, da maneira como é concebido
o esporte é fundamental saber a origem de tudo isso, o que levou a chegar à
situação que chegou a possibilidade de criar alternativas que possam superar
essa situação de sociedade de classes, em que os dominantes sempre têm a ultima
palavra, quando você começa a compreender essas relações, consegue dar
objetividade ao seu próprio trabalho de educador e consecutivamente todas as
outras atividades se tornam mais humanas e isso pude vivenciar enquanto
participante dos projetos sociais desenvolvidos pela APAFEC.
JAI – Em tua avaliação, quais contribuições do
legado de Paulo Freire podem e devem ser destacadas?
Juliana Cruz: Uma das que considero importante e que me motivou a
continuar meus estudos, foi o posicionamento tomado por Freire, a classe oprimida,
o que o fez buscar elementos que levassem esta classe trabalhadora tomar
consciência de sua condição e consecutivamente poder agir politicamente.
A experiência para a alfabetização
de jovens e adultos serviu de modelo para muitas praticas educativas em todo o
Brasil, o que possibilitou aos trabalhadores, jovens e adultos, ler e ter a
possibilidade de escolha diante das alternativas sociais.
E é somente pelo conhecimento
coerente da realidade que é possível construir estratégias para transformar o
mundo. E esse conhecimento só é possível pelo estudo, pela compreensão da
constituição de mundo, sendo a leitura fundamental. Só é possível mudar o mundo
mediante o conhecimento daquilo que causou todo esse transtorno social. Esse
conhecimento permite o questionamento, e para cada questionamento a busca pelo
entendimento, sendo o trabalhador a classe que tem sua força de trabalho
explorada para manter a classe capitalista com sua propriedade privada, tomar
consciência dessa relação de expropriação e da possibilidade do direito de
tornar comunitário, os meios de produzir a vida, se torna necessário.
E sabendo do trabalho desenvolvido
pela APAFEC, nesses 10 anos de atuação junto das classes trabalhadoras,
compreendemos que tem procurado realizar esse movimento de compreensão do real,
além de oferecer projetos de esporte, informática, cidadania, tem se
comprometido com o que Freire nos possibilitou compreender em suas
experiências, a busca pelo conhecimento e a possibilidade de consciência
política, no sentido de transformar a sociedade capitalista, não humaniza-la,
mas revolucioná-la.
JAI – Existem nas universidades, cursos técnicos
de magistério e na escola brasileira de modo geral, certo “desconhecimento” do
pensamento e das contribuições deixadas por Paulo Freire para a educação
brasileira e mundial. A quem e a que fatos e fatores históricos você atribui
isso?
Juliana Cruz: Sempre que tomamos posicionamento diante de nossas escolhas
sociais e teóricas, principalmente quando se refere à classe trabalhadora,
causa certa apreensão no pensamento dominante. Pense ensinar trabalhadores a
ler e escrever, e de maneira a torná-los conscientes mediante o estudo sobre
sua condição de classe oprimida, alienada? Sempre que a experiência, o
pensamento teórico atinge a classe capitalista, o que se faz é tentar fazer com
que esse pensamento não seja notado. No período de ditadura militar sabemos a
decorrência de onde procede a falta de visibilidade de Freire. Com o fim da
ditadura e a onda reformista sabemos que o predomínio é de um pensamento
voltado a tornar o capitalismo humanizado, e o trabalhador pode aprender a ler
e escrever, no entanto se continuar alienado a sua lógica. Então a educação
assume outras configurações e que continuam atreladas aos interesses do capital,
conservadoras, as experiências de Freire, não permitem sustentação a este
modelo e acabam sendo abandonadas.
JAI – A sociedade capitalista vive uma de suas piores
crises, seja pela concentração de renda, seja pela precarização das relações
humanas, educacionais e trabalhistas. Como o legado de Paulo Freire, pode
ajudar na construção de outra sociedade?
Juliana Cruz: Hoje temos um novo perfil de trabalhador analfabeto, aquele
que sabe ler e escrever, no entanto não consegue compreender o que leu e o que
escreveu, não tem poder de agir, decidir politicamente. Considerando que a
educação é a vida, não é apenas transferência de conhecimento, ou buscar qual
vocação o sujeito tem para determinada profissão que permite a reprodução do
sistema capitalista. Temos que voltar aos ensinamentos de Freire e realizar
experiências de formação política, que leve os sujeitos a tomar decisões
profundas, não aprender para continuar alienados, mas receber uma educação
continuada que resulte na libertação consciente.
Sabemos que essa formação humana,
não esta somente na escola, pois se formos verificar a história da escola,
compreenderemos para que e para quem ela foi construída, e prova disso é que
até a contemporaneidade não permitiu que seus conhecimentos, que considero
fundamentais mas não essenciais, resultassem numa revolução para além do
atrelamento, aceitação e permanência desse modo de produzir a
vida, que preza pelas injustiças e desigualdades sociais.
Conforme um dos grandes estudiosos
da sociedade contemporânea Meszáros, é necessário à existência de educadores
comprometidos com as classes trabalhadoras que pensem alternativas que venham
ao encontro da transformação social que se vincula a uma configuração
anti-hegemônica econômica e política.
Assim como Freire conforme as
necessidades históricas de sua época construiu alternativas para suprir as
lacunas e com o intuito de revelar ao trabalhador as contradições sociais,
mediante o acesso a alfabetização e assim também aos livros. Penso que nós
educadores temos uma tarefa, a cumprir buscar construir mediante o conhecimento
da realidade social, estratégias que possam romper com as estruturas da
sociedade capitalista. E enfatizo aqui a contribuição da APAFEC, como um campo
de mediações importante, para a possibilidade de formação humana que resulte em
consciência revolucionária.
JAI – Porque a APAFEC (Associação Paulo Freire de
Educação e Cultura Popular) foi e é importante para tua formação integral? E
quais suas palavras para concluir a entrevista?
Juliana Cruz: Minha inserção na APAFEC foi fundamental para minha
formação humana e continuação do meu projeto de vida, realizar pesquisa. Sabia
da minha condição de classe trabalhadora, passei por 2 anos trabalhando no
processo produtivo da maçã em Fraiburgo, trabalhei no pomar e na classificação
de maçã, tinha consciência que não era certo aquele tipo de relação entre
trabalhador e agroindústria.
Quando comecei a lecionar para os
filhos de trabalhadores da maçã e também para trabalhadores da maçã estava
ciente da relação social de trabalho que estavam submetidos todos os dias nas
agroindústrias. Como também percebia as limitações da escola apesar de realizar
sua tarefa de transmissão de conhecimento, não consegue ir além desse
conhecimento, pois esta articulada com os próprios interesses do processo
produtivo desta região, sendo presentes a violência simbólica, autoritarismo,
disciplinamento forçado, etc. em todo o processo educativo.
Portanto, só consegui aprofundar e
ter uma compreensão cada vez maior sobre essas relações participando dos
momentos de formação que me foram disponibilizados pela minha participação
enquanto militante do movimento de educação popular na APAFEC e também conheci
outros movimentos sociais MST, MAB, Via Campesina, Consulta Popular, etc. por
meio da APAFEC participei de cursos de formação, Escola de Ética e Cidadania,
Semana Pedagógica da APAFEC e, quando necessário fui à luta, mas primeiro com
muita formação e conhecimento de causa, sendo que foi nesse período que me aproximei
ainda mais dos estudos de Marx e hoje posso ter como base teórica da pesquisa,
que me possibilitará ter o título de doutora em 2016.
Considero a APAFEC um movimento de
educação fundamental para a formação humana dos trabalhadores, mesmo com todas
as limitações e afrontas de interesses políticos e sociais, consegue mediante
os projetos sociais, trazer esperança para a classe trabalhadora de Fraiburgo.
Vivemos em uma época em que
possibilitar ao jovem esperança de transformação social é quase que uma tarefa impossível,
devido à afronta do sistema capitalista que cria todos os dias atrativos,
mercadorias e mais mercadorias, a serem consumidas, sendo que o importante é
adquirir um trabalho para ganhar um salário e pagar as contas do cartão de
crédito no fim do mês.
Como já havia expressado nessa
entrevista se torna tarefa do educador engajado com a luta social, criar
possibilidades para ações estratégicas que permitam mudar essa forma de
compreender e organizar a vida. A imobilização para a luta, o relativismo e a
falta de compreender que o capitalismo esta dando os últimos suspiros é notável
em todas as suas instâncias.
Percebo na APAFEC um campo de
mediações para a formação humana para além da educação formal oferecida pelo
estado, que sabemos é a base, mas não suficiente.
Em seus 10 anos têm mostrado pelos
resultados, que fez a diferença na vida de muitos jovens trabalhadores de
Fraiburgo, inclusive na minha vida, pelo aprofundamento teórico através dos
cursos de formação, a motivação para os estudos, os exemplos de vida, da
possibilidade de dialogar e agir socialmente sem esquecer que a transformação
social é possível!