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segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Por baixo do solo olímpico, histórias de tortura e repressão

Conheça locais onde os Jogos são disputados hoje, mas que na ditadura eram palco de tortura pelas mãos do Estado.
Por debaixo de momentos de superação, glória e aplausos que marcam as competições e vitórias dos Jogos Olímpicos do Rio existe um território imerso em histórias de tortura e repressão. De Deodoro ao Riocentro, o Rio de Janeiro que vive hoje êxtase e alegria já foi palco de violações e atrocidades cometidas por agentes do Estado contra militantes que lutaram contra a ditadura (1964-1985).
O principal deles é o Complexo Esportivo de Deodoro, que abriga também o Estádio de Deodoro e o Centro Aquático Deodoro. Idealizado para sediar competições como hóquei, rúgbi, canoagem, tiro, hipismo do pentatlo moderno, futebol e natação, a previsão é que deixe como legado para os cariocas o Parque Radical, com piscina pública e centro olímpico.
O complexo fica na zona norte, nas instalações da antiga sede da Polícia do Exército na Vila Militar, no Rio de Janeiro. O local, de clima bucólico típico do subúrbio carioca que ostenta hoje a energia do espírito olímpico, esconde prisão e tortura de dezenas de membros de organizações como a VAR-Palmares (pelo qual militava a presidenta afastada Dilma Rousseff), além da morte de ao menos dois militantes: Chael Charles Schreier (da VAR-Palmares) e Severino Viana Colou, sargento da Polícia Militar da Guanabara que passou a integrar o Colina (Comando de Libertação Nacional).
“Não vejo como negativo o espaço ser usado para as Olimpíadas, mas o fato de não ter uma memória explícita indicado que o local foi um centro de tortura e extermínio é vergonhoso”, afirma Francisco Calmon, companheiro de luta de Dilma em 1969. “Deveriam ter feito uma estátua ou museu, algo que indicasse que ali foram retirados o sangue e a vida de brasileiros que lutavam pela democracia. Mas no Brasil temos uma política de esquecimento, e não de memória.”
Detido com a namorada Maria Luiza Mello Marinho de Albuquerque, à época com 16 anos, Calmon ficou preso na Vila Militar de novembro de 1969 a março de 1970, em uma rotina de tortura e medo.
Em 2014, ele e outros ex-militantes visitaram o local para uma diligência acompanhados de membros da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ele lembrou que na mesma época estiveram presos também os militantes Antonio Roberto Espinosa, Maria Auxiliadora Lara Barcellos, Colou e Chael. “Ouvi os gritos do Chael até ele não gritar mais”, lembrou Calmon à época.
Apesar de um laudo elaborado por três médicos ter constatado as lesões sofridas por Chael, o Exército anunciou na época que ele havia morrido de ataque cardíaco em consequência de ferimentos sofridos em um tiroteio.
Maria Auxiliadora ou Dodora, como é chamada pelos antigos companheiros de luta, foi presa com Chael em 1969. Militante da VAR-Palmares, foi para o exílio no Chile em 1971 e depois para a Alemanha, onde se matou em 1976. Ela relatou as agruras pelas quais passou no documentário A Report on Torture, que trata das torturas sofridas por 70 militantes brasileiros.
“Eu fui colocada nua na sala com uns 15 homens da polícia. Fui espancada e me deram cerca de 20 bofetadas. Deformaram todo o meu resto. Eles mesmo falavam que queriam me mudar o rosto”, contou durante a entrevista documentada.
“Durante todo o interrogatório colocaram música alta de macumba, com violenta percussão, e à medida que tocavam a música espancava meus companheiros e a mim, e pareciam completamente excitados e alegres. Pegaram uma tesoura, e fechavam-na e abriam-na nos meus seios.”
Maior centro de convenções da Cidade Maravilhosa, o Riocentro é outro local que recebe as competições olímpicas, mas carrega em si a atmosfera da repressão militar. O espaço que sedia provas como levantamento de peso, tênis de mesa, badminton, boxe e vôlei foi palco de um dos episódios mais emblemáticos que desmascarou o Estado ditatorial ao qual o Brasil estava submetido.
Foi lá que um atentado a bomba arquitetado para incriminar a esquerda e sustentar a necessidade de perpetuação das mãos de ferro do regime militar acabou dando errado e expôs a face repressiva do Estado brasileiro.
No relatório preliminar de 2014, “Riocentro: Terrorismo de Estado Contra a População Brasileira”, a CNV conclui que o atentado foi “um minucioso e planejado trabalho de equipe realizado por militares do I Exército e do Serviço Nacional de Informações (SNI) e o que o primeiro inquérito policial militar (IPM) sobre o caso, aberto em 1981, foi manipulado para posicionar os autores diretos da explosão apenas como vítimas”.
Na noite de 30 de abril de 1981 cerca de 20 mil pessoas estavam no Riocentro para assistir um show organizado por Chico Buarque de Hollanda para o Dia do Trabalhador. O grupo de militares que planejou o atentado emitiu uma ordem incomum para que a PM não realizasse policiamento dentro do espaço onde ocorria o show.
Além da bomba que explodiu acidentalmente no estacionamento, matando o sargento que a carregava, uma outra explodiu na casa de força do Riocentro, com o intuito de que faltasse energia no local. O artefato, no entanto, não causou o efeito desejado. Depoimentos falam ainda em outras duas bombas, que foram retiradas do local antes de serem detonadas.
Para a ex-coordenadora da CNV Rosa Cardoso, campanhas de resgate da memória materializadas através de memoriais, estátuas, placas e nomes de rua estão dentre as recomendações feitas no Relatório Final da CNV, mas carecem de vontade política para serem colocadas em prática.
“O Brasil não teve guerras e conflitos tão intensos que tenham dividido o país como aconteceu em outros lugares. Assim, houve uma ditadura, mas não a discussão sobre a memória em relação a isso”, observa Cardoso. “A homenagem às vítimas poderia ser feita próximo aos quarteis da Vila Militar. Uma coisa não elimina a outra, pelo contrário: Forças armadas e repressão militar não precisam se confundir.”

Galeão
Outro local palco de tortura na ditadura e com relativa importância para os Jogos, ao menos na esfera protocolar, é a Base Aérea do Galeão. É nela onde aterrissam autoridades como chefes de Estado ou representantes dos países estrangeiros que vêm ao Brasil.
Para o megaevento esportivo no Rio, cerca de 35 autoridades internacionais foram recebidas na base aérea que fica na Ilha do Governador. Assim como a Vila Militar, o local foi alvo de diligência em 2014, onde estiveram membros da Comissão Nacional da Verdade, peritos, ex-vítimas e testemunhas das violações que ocorreram ali entre os anos de 1971 e 1978.
Um dos militantes que por ali passaram foi Stuart Angel, severamente torturado na base da Aeronáutica antes de morrer. Militante do MR-8, o filho da estilista Zuzu Angel foi preso em junho de 1971. Apesar de relatos de que tenha passado pela Base Aérea do Galeão e pelo Hospital Central do Exército, seu corpo não foi encontrado até hoje.
À época da diligência, ex-militantes notaram que o chamado presídio subterrâneo, onde Stuart Angel ficou preso, foi transformado em centro de lazer. O local, contaram, foi cimentado e batizado em 1982 como Clube do Mickey.
Para o ex-atleta olímpico e líder comunitário na Rocinha Paulo César Martins Vieira (Amendoim), de 59 anos, a escolha por construir o Complexo Esportivo em Deodoro ou manter esses locais sem homenagear as vítimas da repressão da ditadura demonstra falta de cuidado.
“Falaria até em um pouco de falta de sensibilidade por terem construído um complexo esportivo em um espaço onde foram perdidas vidas pelas mãos do Estado”, afirma Amendoim, que disputava as provas de 800 metros e 1500 metros e esteve nos Jogos de Munique em 1972. “Na Europa, os lugares onde pessoas foram mortas se tornam sagrados, ninguém toca naquilo. Mas como aqui tudo é esquecido, com certeza não seriam esses episódios a serem lembrados.”

Por Marsílea Gombata.

Foto: Reprodução/Carta Capital


Fonte: Carta Capital

Tomado do Portal Desacato.Info

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