A caboclada do Contestado resistirá outra vez |
Nem
o Monge João Maria, nem Chica Pelega, a heroína da cidade Santa de Taquaruçu. A
região do Meio Oeste catarinense marcada pela Guerra do Contestado (1912-1916),
um dos massacres mais sangrentos da América Latina, perdeu em julho sua
referência histórica e não se chama mais “Vale do Contestado”. Agora, o espaço
geográfico que abriga quase 300 mil pessoas e uma parte controversa da história
brasileira chama-se “Vale dos Imigrantes”.
A
alteração aconteceu a portas fechadas, em 4 de julho desse ano, na reunião da
Instância de Governança Regional (IGR) – espécie de “braço” turístico do
Governo do Estado em cada região catarinense e que congrega também gestores
municipais do setor. A medida, como se esperava, gerou reações de pesquisadores
e entidades envolvidas na manutenção da memória do Contestado, que classificam
a mudança como um atentado à história e às origens das populações de mais de 50
municípios catarinenses.
“Promoveram
a mudança desse destino oficial turístico sem amplo debate e anuência da
população, organizações civis, outras instituições de turismo, ensino,
pesquisa, tanto públicas quanto privadas”, afirma o professor do curso de
Geografia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Nilson Cesar Fraga, que
estuda a região e a Guerra do Contestado há 25 anos. Nos últimos 20 anos, Fraga
realiza projetos de extensão universitária em municípios que integram a região
e defende que a utilização do termo ‘Contestado’ se caracteriza como uma
indicação geográfica para uma das áreas que mais demandam de políticas públicas
em Santa Catarina, justamente para romper o ciclo histórico de abandono,
pobreza e miséria que segue-se desde o final da Guerra do Contestado, em 1916.
“A
mudança de Vale do Contestado para Vale dos Imigrantes torna a região esvaziada
como atrativo dotado de territorialidade, alma e dignidade, dentre outras
regiões catarinenses. O Vale dos Imigrantes é tão genérico e vazio que
diretamente elimina toda uma população originária Barriga Verde”, destaca o
professor Fraga, que também encaminhou denúncia ao Ministério Público de Santa
Catarina (MP/SC) e à Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC) em que
questiona a alteração do nome da região sem qualquer debate com especialistas e
com as comunidades.
Junto
de outros pesquisadores, Fraga aponta a medida como mais uma tentativa de
apagar o Contestado da história, num processo que busca esquecer as raízes
indígenas da região (Botocudos, Kaingang, Laklãnõ/Xokléngs, Araucanos,
Coroados e Guaranis) e apagar a trajetória de negros e, posteriormente, de
caboclos e caboclas.
Em
artigo publicado no início do mês de outubro, no site Desacato: Vale do Contestado, uma morte anunciada, em julho de 2019, pelos que não aceitam a existência da cultura cabocla, Fraga questiona as motivações para a mudança do
nome da região turística e destaca o aumento, nos últimos anos, do engajamento
da população na tentativa de preservar as memórias das “heranças do
Contestado”. “São cinco anos de realização
ininterrupta das Semanas do Contestado em Lebon Régis. Se acrescentarmos os
eventos realizados nas demais cidades caboclas da região, desde 2012, quando
começaram as rememorações dos centenários da Guerra do Contestado, foram
ampliadas as discussões e os movimentos culturais e esportivos sobre o orgulho
de se ser caboclo/cabocla, fazendo com que pessoas de diversos lugares do país
acompanhassem o rompimento da invisibilidade imposta ao povo caboclo”, avalia o
professor.
O
pesquisador observa a decisão de mudar o nome da região como mais um atentado
cometido contra o povo do Contestado, num processo iniciado pelo genocídio dos
caboclos na guerra, que avançou pela recolonização das suas terras por colonos
de ascendência europeia e europeus e, desde 1930, pela negação da existência
desse povo, perseguição e expulsão dos sobreviventes da guerra. “Agora querem
ampliar a invisibilidade dessas gentes caboclas que, em alguns casos, não
chegam a servir nem como mão de obra barata”, defende Fraga no artigo publicado
em outubro.
O
professor e coordenador da Associação Paulo Freire de Educação Popular
(APAFEC), de Fraiburgo, Jilson Souza, integra o grupo de representantes de
entidades da região que reforça a contrariedade com a retirada do nome
“Contestado”. “É um processo de
silenciamento e marginalização da caboclada do Contestado. A razão central
disso é mais uma vez impor um pacto de silêncio aos caboclos e caboclas do
Contestado, numa tentativa de branqueamento desta região, e o pior aspecto é
que querem repetir a marginalização que já aconteceu na Guerra e no período
posterior”, avalia. Souza aposta na revisão imediata da decisão e reforça o
movimento contrário à medida, que buscou o apoio da Assembleia Legislativa e do
Judiciário de Santa Catarina.
“Herança”
do Contestado
O
pesquisador Nilson Fraga explica que a região, a exemplo do Cariri (Ceará) e
Canudos (Bahia), é reconhecida nacionalmente como um selo de historicidade
sobre o espaço geográfico, enquanto que os “vales dos imigrantes” estão por
todo o território catarinense. Isso retira a importância do Contestado que foi
recolonizado a partir da Guerra. O conflito marcado pelo massacre de caboclos,
posseiros, indígenas e pequenos proprietários rebelados, por forças do Estado a
serviço dos interesses de empresas multinacionais e grandes proprietários de
terras, deixou marcas sociais e econômicas na região até nossos dias.
O
professor da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC,
Paulo Pinheiro Machado, concorda com a análise de Fraga e aponta sérios
equívocos na decisão da IGR Vale do Contestado. Para ele, a medida amplia a
marginalização da população remanescente do Contestado, principalmente a
população cabocla. “Toda aquela região foi violentamente despovoada por causa
da Guerra do Contestado. Depois, nos anos 30 e 40, foi recolonizada com
migrantes vindos do Rio Grande do Sul, em grande número. O fato é que essa
migração suplantou a memória local e marginalizou a população remanescente do
Contestado, que foi alijada dos principais serviços e empurrada para regiões
mais íngremes, pedregosas e insalubres”, explica Pinheiro Machado, que também
coordena o Grupo de Investigação sobre o Movimento do Contestado.
São João Maria o santo dos Caboclos e Caboclas |
Na
visão do pesquisador, a IGR busca um projeto turístico que imite cidades como
Gramado e Canela, buscando emplacar um modelo copiado, sem qualquer identidade
regional. Para ele, não há alternativa turística razoável sem a memória efetiva
do território e da população nele existente. “Inventar outra tradição não é a
solução, porque sempre será piorado. Tentarão inventar coisas para
invisibilizar a população cabocla, além dos próprios descendentes de imigrantes
italianos e alemães que também participaram do movimento do contestado”,
observa Paulo Pinheiro Machado.
O
que se sobressai na origem dessa mudança de nome da região, segundo o
professor, é o preconceito de classe contra pobres e camponeses, e o racismo
contra os negros, índios e caboclos. “O que chama a atenção nessa proposta é a
vergonha de ser brasileiro. E isso que está na base. Santa Catarina tem
milhares de vales europeus e de imigrantes. São nomes que se repetem. Preferem
isso à identidade da Guerra do Contestado, um tema que já está em debates
nacionais, já caiu no Enem. É realmente muito lamentável que a própria região
não valorize seu passado e sua história”, conclui.
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