Para quem não conhece a região,
não é fácil chegar à Fundação Gol de Letra. As vias tortuosas e as ladeiras da
Vila Albertina, no bairro do Tremembé, extremo norte de São Paulo, confundem
quem está acostumado às ruas largas e sinalizadas do chamado centro expandido
da capital paulista. A organização fundada pelos ex-craques do São Paulo, Raí e
Leonardo, em 1998, fica no alto de um morro.
Vista de fora, parece uma escola
infantil bem cuidada, contrastando com as casas vizinhas, sem revestimento, e
na companhia de Raí, vamos descobrindo a fundação. Entramos nas salas, ele
cumprimenta as pessoas, explica as atividades realizadas ali: aulas de
capoeira, futebol, teatro, música, informática. O objetivo é complementar a
formação das crianças da região.
Ele é o que se pode chamar de
exemplo inspirador para a molecada. Tetracampeão com a seleção brasileira em
1994, 5 vezes campeão paulista, 2 vezes campeão brasileiro, campeão da
Libertadores e campeão mundial pelo São Paulo, além de uma passagem vitoriosa
pelo PSG (Paris Saint Germain), da França, Raí aproveita os troféus
conquistados no futebol profissional para erguer outras bandeiras: “As pessoas
estão menos interessadas no esporte em si, enquanto direito das pessoas”, diz.
Ele também é diretor da ONG
Atletas Pela Cidadania, presidida por Ana Moser, uma mobilização de atletas
consagrados por políticas públicas para o esporte e, antes de começar a
entrevista, mostra no jornal a primeira vitória da organização: o governo havia
endossado a proposta dos atletas para emendar a Lei Pelé (MP 612), adotando
medidas como quatro anos de mandato para dirigentes das federações que recebem
recursos públicos, transparência na prestação de contas, participação dos
atletas nas eleições e remuneração dos dirigentes. “Saiu hoje, o governo
endossou”, repetiu, orgulhoso. Leia aqui a entrevista do craque.
Quando você iniciou sua carreira
como atleta você sentiu falta de ter uma estrutura como a que você oferece para
essas crianças na Fundação Gol de Letra? Faltou algum apoio nesse sentido?
Eu sentia isso de duas formas
diferentes. Primeiro, no próprio clube que deveria incentivar e se preocupar
mais com o jovem. Hoje em dia mais ainda porque os jogadores chegam com 12, 13
anos para morar no clube e geralmente vêm de outra cidade. Mas o que era mais
forte para mim era sentir o quanto os jogadores com quem eu convivia, meus
companheiros e colegas de time no juvenil, nos juniores e depois no
profissional também, eram pessoas capazes, inteligentes, mas que não tiveram
acesso à informação, a uma boa qualidade de educação, a experiências
diferentes, como a gente tenta fazer na Fundação. Apesar de ter vindo de um
meio mais pobre e tal, quando eu nasci meu pai já estava numa condição melhor,
e vi que 95% dos atletas vêm de regiões pobres, de bairros pobres com escolas
ruins e que acabam tendo que deixar a escola. Eu tive boa escola, boas
condições e pude ver o quanto isso limitava o potencial e as oportunidades que
eles tinham. Isso me marcou e me deixou muito sensível ao tema. E não só pelo projeto
aqui, mas também pela minha visão ideológica, de justiça social, tudo o que eu
fui desenvolvendo depois. Eu sempre digo que o que me levou a montar a Fundação
não foi só a diferença de recursos, mas também de oportunidades entre as
pessoas, o que é a grande injustiça.
Você poderia explicar mais sobre
o papel dos clubes na formação dos atletas?
Existem bons exemplos de clubes
que ainda são minoria, mas, em geral, o clube só quer formar o atleta para
jogar no time dele, com uma visão muito pobre de formação cidadã, educacional.
A formação é muito voltada para desenvolver um lado técnico, de fundamentos, o
aspecto físico, mas essa outra parte, de desenvolvimento da pessoa, fica
esquecida. Pelo fato de eles serem responsáveis por esses garotos já muito cedo,
eles teriam que ter uma fiscalização mais constante, mais presente. O Conselho
Tutelar já chegou a multar ou tomar outras providências em alguns clubes em que
os caras não iam para escola ou não estavam em situação decente. Então acho que
é uma coisa que ainda tem que melhorar bastante.
E qual é o efeito disso para o
atleta?
O efeito é um jogador menos
preparado, uma pessoa menos preparada para encarar as coisas. O reflexo disso
fica evidente no pós-carreira, quando ele sai do universo do futebol e fica
perdido, sem uma visão mais ampla. E quando você se torna um atleta, além de
cidadão, você se torna uma pessoa pública, e aí a formação faz falta para
participar, ser consciente.
Você teve uma breve experiência
como gestor das categorias de base do São Paulo. Como foi?
Durante os três meses que fiquei,
eu vi que os atletas moravam em quartos embaixo da arquibancada do estádio do
Morumbi: as janelas tinham grades, os meninos tinham que se deslocar para a
escola, para o treino… Então a primeira coisa que eu fiz foi provar para os
dirigentes que valeria a pena ter um centro de treinamento que o São Paulo não
tinha. Para tirar os garotos dali, eles alugaram um centro de treinamento que
pertencia ao José Roberto Guimarães, treinador da seleção feminina de vôlei.
Outra coisa que eu fiz foi trazer um educador com grande experiência, que era
ligado à Escola da Vila [colégio particular de São Paulo], que também tinha
trabalhado em presídios, tinha vivência em diversos ambientes, para Eu a gente
desenvolver um projeto educativo [no São Paulo], como a gente faz aqui. Uma
ideia de educação integral: ver como as crianças convivem, onde elas vivem, a
escola, o tempo livre, ver como trabalhar isso para ter uma formação mais
ampla. A minha primeira preocupação foi justamente essa questão humana. E
depois que eu saí, o Cilinho, que entrou no meu lugar, manteve esse educador
por mais um tempo. Não acompanhei de perto, mas tenho certeza que ele deve ter
colaborado bastante.
Por que você saiu em tão pouco
tempo?
Primeiro porque a estrutura do
futebol e dos clubes tem muitas amarras políticas, né? Então você tem que
compor com várias chapas, vários interesses diferentes, para você conseguir se
eleger ou se manter onde está. E acaba ficando muito dividido. Eu entrei num
momento em que a oposição tinha ganhado, então estava mudando de grupo. Achei
que iria colaborar como um executivo, como um profissional que ia fazer esse
tipo de plano. E eu vi que as pessoas ali dentro me respeitavam como pessoa, me
tinham em boa conta, mas não queriam profissionalizar o trabalho, tinham outros
interesses. E aí acabou travando. Ali eu me senti meio que como um peixe fora
d’água, senti que ia acabar incomodando, arrumando briga política. E eu, por
ter sido ídolo do São Paulo, vi que eu tinha muito mais a perder do que a
ganhar em uma estrutura que não estava pronta para as ideias e para a maneira
como eu queria atuar.
Mudando um pouco de assunto: como
você avalia a superestrutura do futebol? Esse modelo de repasse de verbas da
confederação para as federações?
Acho que é uma estrutura viciada
há muito tempo. As federações que elegem o presidente da confederação são, na
maior parte delas, [dirigidas por] pessoas que já estão há muito tempo no
poder. Os clubes que elegem o presidente da federação geralmente devem favores
à pessoa que está na presidência da federação. O presidente da federação é um
cara que já ajudou clubes aqui e ali, até financeiramente. E o clube acaba se
sentindo obrigado a votar nessa perpetuação de poder. A CBF é a mesma coisa:
acaba fazendo conchavos com as federações para se manter ali e devolve esse
conchavo com favores. Então acho que é uma relação viciada para permitir uma
perpetuação do poder, algo completamente antidemocrático. E as pessoas que
gerem o futebol acabam se sentindo donas dele e se esquecem do interesse
público do esporte que elas representam. E isso não só com o futebol, mas com
todas as modalidades esportivas. Esse vício começa montando um ambiente que é
muito propício para falcatruas, corrupção, mau uso do dinheiro, em detrimento
da modalidade e das pessoas que estão envolvidas com o futebol.
Você acha que a Copa do Mundo
pode impulsionar uma discussão pública desse modelo?
Acho que é uma oportunidade. A
gente viu a quantidade de exigências que a FIFA coloca para o país poder
receber a Copa do Mundo. E como existem muitos interessados, o país acaba
cedendo e aceitando todas essas exigências. Aí a FIFA vem com uma coisa pré-determinada
que acaba dando muitos poderes para ela própria, ou para a confederação que
está recebendo a Copa. Então a Copa do Mundo por si só, acho que não poderia
deixar legado nesse aspecto porque os responsáveis pela organização são eles
mesmos. Até o governo federal começou a perceber isso, tanto que a Dilma tem
uma relação super distante tanto com o Ricardo Teixeira quanto com o Marin, não
quer nem aparecer junto. Mas ao mesmo tempo é uma grande oportunidade da
população se mobilizar, das pessoas organizadas reivindicarem, porque isso tem
que mudar. Antes não havia propostas, apoio da opinião pública, os esportistas
também não tinham uma mobilização tão grande… Agora eu acho que está
acontecendo, é o que a gente está fazendo. Essa emenda que aprovamos é um
exemplo. Enfim, a Copa do Mundo é uma oportunidade para que as pessoas se
manifestem e aí forcem uma mudança. São mudanças que até poderiam acontecer de
outra forma, mas com a Copa aqui, chamando a atenção, é uma grande oportunidade
para que a gente tenha os avanços nas estruturas do futebol.
E estamos aproveitando essa
oportunidade?
Por enquanto estamos aproveitando
pouco. Acho que ainda tem tempo e as Olimpíadas vão estender o interesse e o
ambiente de discussão sobre esporte até 2016, pelo menos. Acho que vai depender
da nossa mobilização e de uma boa estratégia para poder tocar e mexer nos
pontos chave. No nosso caso, o que estamos fazendo é ter discussões internas e
com outros atores da sociedade que mexem com o tema para ver quais pontos
podemos atacar. O que pode acontecer é a imprensa e a população também ficarem
atentas a alguns abusos que aconteceram. E por que eles acontecem? Por ter
muito poder centralizado, acumulado na mão de poucos. Temos que pensar tudo que
não avançou e foi mal feito, mal intencionado, o quanto isso prejudica o
desenvolvimento do esporte no Brasil.E precisamos ver o que poderia ser feito
de diferente, se houvesse essa alternância de poder, quais seriam as vantagens,
os benefícios. Precisamos mostrar, discutir, debater e reivindicar. Esse é o
caminho.
Quais são as dificuldades de
levantar essas bandeiras?
Acho que tem uma questão [da
dificuldade de adesão] entre os esportistas por uma questão cultural. E também
por uma questão de carreira do esportista, que dura de 15 a 20 anos, no máximo.
Ele tende a ter uma carreira e depois ir fazer outra coisa, se interessar por
outra coisa, então você não tem uma participação ativa. E já não existe uma
cultura de participação entre atletas, que é o que estamos querendo mudar.
Outra questão é que a sociedade não dá o valor que o esporte poderia ter em
todas as suas dimensões: educacional, de saúde, enfim. Falta essa cultura da
importância e do impacto que o esporte pode ter na sociedade e por isso ele é
encarado como uma coisa secundária. As pessoas até estão interessadas na
questão da confederação, das federações, da vida política do esporte e dos
grandes eventos, mas estão menos interessadas no esporte em si enquanto
política pública, enquanto direito das pessoas. Se você sair aqui fora, você
não vai encontrar nada de área de lazer. No Brasil, 30% das escolas não têm
aula de educação física. Se você não tem esporte na escola, no seu bairro, você
fica privado de um direito e de uma ferramenta importantíssima no seu
desenvolvimento físico, intelectual, cognitivo. Então a grande luta é mostrar a
importância que o esporte pode ter no desenvolvimento humano, para o
desenvolvimento do país de uma maneira geral. E tentar mudar essa falta de
cultura esportiva que existe ainda no país.
Você vê resistência da imprensa
esportiva em lidar com isso? Tanto com outras dimensões do esporte
(educacional, de participação) como na questão política?
A meu ver é tudo parte de um
processo. Por exemplo, no Pan-Americano de 2007 existem provas de superfaturamento
absurdas e ninguém foi responsabilizado; nem o governo do Rio, nem federação,
ninguém. E está lá comprovado com documentos do TCU e tudo mais. Quando o Rio
estava concorrendo para as Olimpíadas, existiu até um começo de investigação no
Congresso, mas ficou explícita aquela ideia: “Olha, se a gente for atrás disso,
o Brasil não vai levar as Olimpíadas. Vamos esquecer esse assunto. Como a gente
quer levar esse assunto se a gente prova que existiu um escândalo no Pan?”
Nesses assuntos acho que a imprensa pegou muito leve e foi muito superficial,
não foi atrás. E é uma coisa que está aí, ainda existe. Então acho que são
coisas que deveriam ter tido mais luz e deveríamos ter ido às últimas
consequências.
Em relação ao futebol a gente
está vendo algumas declarações no sentido de não se preocupar com as denúncias
da Copa, para ajudar na ‘festa’…
Sim, estamos vendo a mesma coisa
com a Copa. Isso é ridículo. As manifestações chegaram no mês da Copa das
Confederações. A competição aconteceu, com alguma tensão a mais, mas as
manifestações aconteceram para cobrar, para exigir. E é isso que tem que
acontecer. Espero que a Copa também sirva para chamar a atenção para outros
problemas.
Tanto você como o Sócrates sempre
tiveram preocupação com questões extra-campo e posicionamentos ideológicos
claros. Isso trouxe problemas? Ser mais posicionado politicamente atrapalha a
carreira do atleta?
Eu acho que tem muita gente que
evita criar polêmicas ou externar opiniões com medo de atrapalhar a carreira.
Mas existe também muita alienação no sentido de desinformação mesmo. A pessoa
vê uma coisa errada, não vai atrás, não quer saber… No caso do esporte, não é
um privilégio do Brasil. O esportista de uma maneira geral tem essa imagem
também fora do país. Conversei com um dos líderes do movimento estudantil de
maio de 1968, o Daniel Cohn-Bendit, que estava fazendo um documentário sobre a
Copa. E ele entrevistou Sócrates, me entrevistou, e entrevistou outros
personagens. Ele até falou que aqui no Brasil tem mais atletas interessados no
extra-campo do que lá fora. No fundo, o atleta tem uma visão egoísta por ter
uma carreira curta. Mas também tem muitos que se alienam porque não têm
informação. Falta uma formação mais ampla.
Você já teve problema por ser
envolvido, engajado?
Não muito. Acho que depende da
maneira que você se coloca. Eu lembro que com 20 anos de idade, no Botafogo de
Ribeirão Preto, os salários dos atletas já estavam três, quatro meses
atrasados. O time estava numa situação ruim e o clube contratou outros
jogadores para salvá-lo. E aí na primeira vez que sentamos com dirigentes e
jogadores contratados eu disse: “Olha, acho um absurdo vocês contratarem
jogadores sendo que tem jogador aqui sem receber”. E trouxe um desconforto. Em
algumas outras situações também trouxe, mas nada que prejudicasse a minha
carreira. Nunca deixei de colocar minhas posições.
O que você acha do Brasil receber
a Copa do Mundo? Pensando em todos os impactos que ela tem, como você avalia a
vinda da Copa para o Brasil?
Por alguns motivos que citamos
antes, criar um ambiente para discutir o esporte, o futebol, a política…acho
que isso já é um legado que a gente pode deixar. Em outros aspectos, como, por
exemplo, o que aconteceu no Pan-Americano, não era um país que, pelo histórico,
merecia [os megaeventos]. Mas acho que pode trazer coisas boas para o país, se
pegarmos esses maus exemplos do passado, tentar fiscalizar mais, ter mais
transparência. E a transparência que a gente quer instituir para a Copa, que
isso se estenda para o futebol de maneira geral. Mas a gente sabe que com a
falta de planejamento que teve, atrasos, com certeza vai ter muito desperdício,
falta de transparência, muita coisa sem licitação, coisas que vão contra o
interesse público. E só depois da Copa que a gente vai ver o balanço. Se fosse
bem planejado acho que poderia ser produtivo, mas como a gente sabia que o
Brasil já não teve capacidade de se planejar bem, acho que vai ter muito
desperdício de recursos e de possibilidades que teriam de melhorar a estrutura
de eventos ou das regiões onde a Copa vai estar presente, vai estar muito
abaixo do que poderia.
E o fato de a Copa que foi
vendida como a Copa da iniciativa privada ser quase inteiramente bancada com
dinheiro público?
Acho um absurdo, temos que ir a
fundo nisso. Nunca acreditei naquilo que se dizia no começo, que seria com
dinheiro privado. O que a gente tá vendo é que tá havendo muito dinheiro
público e se fala que é financiamento, que vai retornar… Acho que isso é
inaceitável e tem que ir atrás pra ver também qual vai ser o retorno. No final,
vamos fazer a conta, por na balança e ver se valeu ou não valeu receber a Copa.
Existe um embate entre a
administração privada das Confederações e clubes e o fato de o futebol ser um
bem público. Como é possível equilibrar os dois?
Acho que a questão é realmente
mudar a legislação. Uma organização que tem uma gestão privada acha que não
deve satisfações nem ao poder público, nem a ninguém. E no futebol o caso é
mais complicado; se nos outros esportes que recebem dinheiro público, você não
tem transparência, no futebol que não recebe dinheiro público, pelo menos no
caso da CBF, menos ainda, né? Então Outro com a Copa do Mundo você entra e se
apossa do país durante um mês, e também durante a preparação e, ao mesmo tempo,
as decisões são tomadas de uma maneira privada. A maior parte delas segue o
interesse das Confederações ou da FIFA. Fica um tabu até porque a FIFA ameaça
que, se houver interferência do Estado numa Confederação nacional, ela tira da
Copa do Mundo. Então, é um tabu que tem que ser rediscutido. Se a Confederação
que usa os símbolos do país, as cores do país, se os eventos que ela organiza
têm um impacto público claro, muito dessa autonomia tem que ser rediscutida.
No manifesto da Atletas vocês
também colocaram a questão dos direitos humanos. Por que vocês decidiram
levantar essa bandeira?
É para estar em sintonia com o
momento do país, das manifestações também. A gente viu essa mensagem e nós como
atletas não podemos passar fora disso. Se existe o padrão FIFA, o superfaturamento,
ou a questão dos direitos humanos, da retirada das famílias para construir
estádio e tudo, a melhor maneira de responder isso é através de uma
investigação oficial, seja pelo Ministério Público, CPI, o que for. Todo mundo
tá querendo saber. Se tem um estádio que custa 600 milhões, então vamos abrir:
O que aconteceu? Houve superfaturamento? Não houve? Foi gasto muito mais do que
previsto? Por quê? Na questão das remoções, houve abuso? Acho que você tem que
mostrar a ferida, né? E que sejam punidos os responsáveis. Acho que é isso que
a população tá querendo, tá buscando. Você tá protestando para que não aconteça
mais, para que mude, mas também para que, se houve abusos, punir de uma forma
exemplar. Isso é o que não aconteceu no Pan-Americano. Não basta só protestar
ou querer dar voz, fazer plebiscito, mudar um monte de coisa, se você não
mostrar o que aconteceu na época e o que acontece agora.
A Olimpíada é um evento voltado
para esportes de rendimento e os investimentos são feitos nesse sentido. Você
acha que o investimento em esportes de rendimento pode gerar uma cultura
esportiva na população?
Eu acho que até contribui você
ter um atleta de rendimento com sucesso, ele incentiva até certo nível, mas
muito menos do que se imagina. O que é burrice, na verdade, é não pensar numa
política de esporte mais global e que atinja a população em geral. Quantas
pessoas praticam natação no Brasil? Quantas têm a oportunidade de ter uma
piscina decente? Devem ser milhares apenas num país de milhões. Você tá jogando
um monte de grana, não tá privilegiando a maioria, não tá levando isso em
consideração, e desperdiçando talentos. Ter um campeão a mais ou um a menos
estimula, mas se você não tiver acesso ao esporte não adianta. Se você vai lá e
tem uma série de campeões ou algumas medalhas a mais, depois que passa a
Olimpíada, o dinheiro não volta e o esporte continua da mesma maneira. É
burrice pensar só nesse lado emergencial para tentar mostrar serviço, quando a
situação do esporte no país é ridícula porque está fora dos direitos básicos de
qualquer cidadão.
Falta atenção do governo para
manifestações espontâneas, amadoras do esporte? Por exemplo, o futebol de
várzea. Falta atenção no sentido de incentivar, oferecer um lugar melhor para a
prática?
As federações e confederações
monopolizam as atividades mais instituídas, organizam os campeonatos e o que
está fora disso fica largado. Existe aí um potencial a ser desenvolvido não só
no futebol, mas no esporte em geral. Em qualquer outro país você tem uma
política paralela que amplie essas práticas amadoras. Na França, que eu conheço
mais de perto, uma contrapartida que a federação tem que dar é provar que está
disseminando a prática da modalidade pela qual é responsável. Tem que prestar
contas daquilo. Não é só organizar o seu campeonato, você tem que democratizar
a atividade da sua modalidade. Lá, o principal papel de uma federação é dar
acesso ao maior número de pessoas no país àquela modalidade. Quem organiza o
campeonato são as ligas de clubes; a federação só entra com seleção, essas
coisas. É uma escolha política falar para a federação “Tudo bem, você cuida do
futebol, mas você tem que fazer com que todas as pessoas que queiram tenham
acesso ao futebol, fomentando onde não tem”. É uma opção política colocar isso
como prioridade.
Na Atletas vocês tem entre as
metas que todas as escolas brasileiras tenham quadras até 2022, até 2016 para
as cidades-sede. Você acha que estamos caminhando para isso?
Para 2022, sim. Até 2016 vai ser
mais difícil, mas os prefeitos dessas cidades se comprometeram com essas metas
e a gente vai estar em cima. No Rio, que é cidade sede das Olimpíadas, em cerca
de 20% das escolas, mesmo que você queira construir uma quadra, você não tem
espaço. A escola foi pensada sem espaço para atividade esportiva, outras coisas
foram construídas no entorno… Junto com o Instituto Ethos desenvolvemos um
questionário que vai acompanhar ano a ano até as Olimpíadas qual vai ser a
evolução. É nosso papel também fazer valer esse compromisso que eles assinaram
e cobrá-los. Depois disso, se a coisa andar e a política de uma maneira geral
melhorar, talvez até 2022 a gente consiga.
A Ana Moser disse em entrevista à
Pública que o esporte é uma caixa preta: há poucos dados disponíveis para guiar
uma política pública mais estruturante para o esporte. Como vocês pretendem
incentivar a produção desses dados?
Para as cidades sede que
assinaram o compromisso, a gente exigiu que se fizesse um diagnóstico para
poder medir a evolução. E é triste quando o próprio Ministério do Esporte ou as
Secretarias de Esporte das cidades, essas menos ainda, não têm diagnósticos,
números para a gente ter como base. Qualquer plano começa com a avaliação da
situação. Acho que essa é uma das grandes provas do descaso com a política de
esporte no país. E outra questão que poderia também ser mais debatida com a
imprensa: 90% das secretarias de esportes do país são barganhas políticas,
indicando quem tem pouca experiência e pouco interesse no tema. E isso no
governo federal, nos estádios e municípios. Geralmente o partido menos
expressivo na chapa, leva a secretaria dos Esportes. Isso tem que mudar, e aí
passa por essa questão da população se tocar do direito que tem.
Você vê algum caminho de como é
possível promover essa mudança de concepção do esporte como uma coisa auxiliar,
para fazer no tempo livre, para uma atividade com papel estruturante na
educação e na política do país?
Uma das nossas linhas de atuação
é a de desenvolver pesquisas e estudos e levantar o que já existe. Em Londres,
por exemplo, foi provado que praticar esportes melhora o desempenho em outras
disciplinas na fase escolar porque ajuda no desenvolvimento cognitivo e tudo
mais. Também existem experiências e estudos que mostram que o esporte é melhor
na linguagem para a integração e na mobilização de uma comunidade, e que
mostram uma diminuição de violência clara com a prática do esporte. É você
mostrar isso, fazendo, talvez, estudos maiores no país e constatar que onde
você tem acesso a esporte e a lazer você tem menos violência, melhor desempenho
na escola. Acho que se basear em estudos e depois ir atrás de buscar políticas
nesse sentido, né? Pegando casos de cidades que fizeram isso, você começa a
caminhar para a valorização e a conscientização da importância do esporte.
E a isso se soma uma vontade
política?
Com certeza. E a vontade política
também anda a empurrões. E é isso que a gente tá tentando fazer.
O deputado Vicente Candido,
relator da Lei Geral da Copa, lançou o Proforte ( Programa de Fortalecimento
dos Esportes Olímpicos), que propõe a anistia da dívida fiscal dos clubes de
futebol, estimada em R$ 3 bilhões, em troca do investimento deles em esportes
olímpicos. O que você acha dessa ideia?
Acho que o interesse que puxa
isso é mais o perdão das dívidas do que o interesse no esporte olímpico. Isso
não faz parte de uma política maior. Deveria estar se debatendo mais a política
de esporte olímpico do que o que os clubes podem fazer. A dívida e o que esses
clubes podem fazer pelo esporte tem pesos políticos desproporcionais.
Pensando nas manifestações dos
últimos meses, se você pudesse passar um recado para os cidadãos, que são
também torcedores, o que você diria para a população brasileira em relação à Copa?
Achei lindo o que aconteceu
durante a Copa das Confederações. Vamos aproveitar, potencializar esse
ambiente. Infelizmente a FIFA vai ter que conviver com essa tensão, porque ter
uma Copa do Mundo chama atenção para o país ,e dá mais força às vozes que estão
loucas pra se manifestar.
Por
Ciro Barros e Giulia Afiune,
Foto:
Renato Leite Ribeiro
Tomado
do Portal Brasil de Fato
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