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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

A glória, a tragédia e o velho Chapecó

Jogo mais importante da história do clube. Último minuto da semifinal do torneio continental. É um clube modesto, que heroicamente sobe, em seis anos, da quarta para a primeira divisão nacional. De repente, tem à frente um gigante argentino, recentemente campeão da América, time do Papa. Mas o clube modesto tem seu dia heroico. Bravamente, segura o empate que garante a passagem à inédita e grandiosa final do torneio continental. Bravamente, segura o empate até o último minuto.
Último minuto. O gigante argentino cruza a bola na área. A bola é rebatida. Sobra, limpa, para um jogador argentino, frente à frente com o goleiro. Todo o estádio se cala. No último minuto do jogo mais importante da história do clube, aquele segundo parece eterno. O jogador argentino arma o chute fatal. Talvez dois ou três metros entre a bola e o gigantesco gol à frente: gol de mais de sete metros de largura e quase dois e meio de altura. O chute vem. É o golpe fatal de Golias contra Davi.
Mas não. Não neste dia sublime. Num movimento magistral, o goleiro do modesto clube sacramenta em glórias aquele dia destinado a ser heroico. Uma perna esticada. A bola, que parecia certeira em direção ao gol imenso, explode na perna direita esticada do goleiro-herói. É o dia de maior alegria nos 43 anos de vida daquele modesto clube – que jamais havia sido tão gigante.
Há uma lenda antiquíssima que tenta retratar o profundo mistério da vida. Conta-se que havia um povoado em que muito do trabalho necessário era realizado por cavalos. Um já idoso senhor possuía o mais belo e forte cavalo do povoado. O cavalo, entretanto, certo dia fugiu.
Todos ficaram perplexos e, repletos de piedade, dirigiam-se ao velho com palavras de pesar, ao que o senhor respondia: “Por que falam assim? O cavalo se foi, mas como podemos dizer se isso é bom ou ruim? Deixemos que o tempo nos traga suas respostas”.
No dia seguinte, o cavalo retornou trazendo consigo sete outros cavalos. O povoado encheu-se de alegria e resolveu celebrar. “O velho estava certo”, diziam. “A fuga do cavalo era o melhor que poderia ter acontecido!” Mas o ancião era o único que se mantinha sereno. “Chegaram aqui sete novos cavalos. Mas como poderemos afirmar se isso é motivo para comemorações? Deixemos que o tempo nos traga suas respostas”.
Mais um dia se passou e, numa cavalgada, um dos novos cavalos derrubou o filho do velho, quebrando sua perna. “Velho sábio”, todos pensaram. “Ele sabia que esses novos cavalos não trariam coisa boa ao povoado, e eis o resultado”. Mas o velho se mantinha tranquilo. A perna quebrada de seu filho seria de fato motivo de lamentação? Somente o tempo traria suas respostas.
No dia seguinte, chefes do exército vieram ao povoado recrutar soldados. Como o filho do sábio ancião estava com a perna quebrada, foi poupado da guerra. O povo surpreendeu-se novamente. Mas o velho mantinha sua postura. O velho sempre mantinha sua postura. A história, do velho e de cada um de nós, prossegue indefinidamente. A sabedoria de vida suprema do ancião estava em saber que nada poderia saber sobre a vida. A sabedoria suprema do ancião estava em saber que a sabedoria está apenas no tempo – e o tempo sempre seguirá seu curso, contará suas histórias e trará suas respostas.
A heroica perna esticada no último minuto do jogo histórico. O juiz apita o fim da partida. O modesto clube tem a maior glória de seus 43 anos de vida. Está na final do torneio continental.
O tempo traz, contudo, suas respostas. O tempo traz suas respostas mesmo quando nós não sabemos qual era a pergunta. Cai na Colômbia o avião que transportava os jogadores e a comissão técnica para a tão esperada final do torneio continental, contra aquele que é, hoje, o melhor time das Américas. Não entendemos as tramas misteriosas da vida. Nunca conseguimos de fato entender, por mais que tanto queiramos. Nos desesperamos a cada dia em que percebemos que não estamos no controle da nossa própria história. Nos desesperamos a cada dia em que a vida escancara diante da nossa cara atônita que não temos a menor ideia, de fato, sobre o que é bom e o que é mau.
Dias de grandes tragédias escancaram nossa pequenez. Contentamo-nos com nossas pequenas vitórias sem termos a menor ideia se são, de fato, gloriosas. Desesperamo-nos com nossas pequenas derrotas sem saber as bênçãos que a vida pode esconder no aparentemente trágico. Seguimos como os habitantes comuns do antigo povoado: rindo e chorando diante de cada acontecimento em nossas vidas, como se soubéssemos que são motivos para choro ou para riso. Mas não sabemos. Nunca soubemos.
Mas talvez viva, em Medellin ou em Chapecó, um sábio ancião. Um ancião que sabe que nada pode saber. Um velho que sabe que uma perna quebrada não necessariamente é trágica e que uma heroica perna esticada não necessariamente é gloriosa. E que talvez, com seus olhos sábios, consiga ver ainda além.
Gosto de imaginar o velho se levantando nas primeiras horas da manhã e preparando, em silêncio, seu café. Um vizinho vem, com os olhos fundos de tristeza, e lhe conta a notícia da madrugada. O velho se entristece também. Mas, em seu coração, mantém a serenidade. Porque sabe que pernas esticadas não necessariamente são gloriosas e pernas quebradas não necessariamente são tristes. Porque sabe: só o tempo pode dar a verdadeira dimensão das nossas vitórias e das nossas derrotas. E, acima de tudo, sabe: mesmo a mais aparentemente insuportável dor das grandes perdas e das grandes tragédias talvez seja apenas um pequeno momento na infindável trama da existência. Apenas um pequenino momento que nossos pequeninos olhos podem ver. Nas imensas profundezas do seu coração, o velho sabe: a história continua. Sempre continuará. E o tempo continuará nos trazendo suas respostas.
Talvez viva, em Medellin ou em Chapecó, um velho.


Por Bruno Amabile Bracco – Defensor público, mestre e doutor em Criminologia pela USP e autor dos livros “Carl Jung e o Direito Penal” e “A Gnose de Sofia”.

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